Impressionante como uma cidade
vista de fora é tranqüila e acolhedora, sem conflitos, sem muitas perturbações.
Pode-se sentar num café e observar a gostosa rotina que um canto desses
oferece. De manhã cedinho há pouco engarrafamento, as pessoas chegam no
trabalho rapidinho, as mãe andam pelas calçadas com as crias, algumas vão ao
supermercado outras tem que deixá-las na escola. Durante o dia as pessoas andam
pelo comércio movimentado, lojinhas simpáticas, sol quente; nas praças há
sombra suficiente para acolher as pessoas aparentemente desocupadas.
Na cabeça de todas essas pessoas,
há contas a pagar, paixões não vividas, conflitos com o vizinho, problemas de
comércio. Dessa forma, se você se aprofundar em sua observação dessa paz
aparente, percebe-se isso.
Um senhor chama muita atenção
nessa cidade, pois ele fora grande produtor de Cacau, prefeito por oitos anos e
deputado estadual por 16 anos. Rico, bem sucedido, educado, bem casado e no fim
da vida. Nessa pacata cidade ele tem paz, tempo para brincar com os netinhos,
as netinhas, passear com sua primeira e única esposa, comer bolinhos, tomar
café, etc,etc. Uma pessoa bem resolvida, feliz com tudo que viveu, que realizou
e construiu com muito trabalho: um
patrimônio e uma família. Aos domingos sempre almoça na casa de sua filha
caçula, seu xodó de sempre; quando os irmãos sentem saudades do pai, é aí que
vão a seu encontro. Já tem netos de 30 anos e sempre gasta horas dando lhes
conselhos sobre negócios, política, mulheres e casamento; é um verdadeiro líder
dentro de sua família e a admiração que os filhos tem por ele chegou até os
netos. Os filhos não quiseram seguir nem o ramo do Cacau nem o ramo da
política; formaram-se em direito, engenharia e medicina; apenas dois netos
herdaram essa preferência do avô pela política. As coisas na vida desse senhor
sempre tinham andado tão bem, que ele não nunca teve necessidade de se
perguntar, se questionar, se avaliar. Nessa maré de paz em que vivia, era uma
pessoa arrogante, e não lhe sobrava tempo para avaliar sua postura durante a
vida, nos negócios ou na política; nunca enxergou nada além da linda
família e do patrimônio criado. Na consciência, às vezes, lampejos de
lembranças e ações lhe vinham à memória, mas nada que o mobilizasse. Sua mulher
era um pouco conflitada com as posturas dos homens perante a vida e o amor ao
próximo, mas nem ela mesma conseguia um pouco de reflexão nesse homem.
Passara o dia lendo na praça;
chegando em casa saudou sua esposa que, muito atenciosa lhe serviu um café.
Do nada um surto lhe deu na cabeça e a imagem de uma linda menina,de seus três
anos, o atordoou um pouco. Perguntava-se de onde viria a imagem daquela
garotinha; realmente, ele não se lembrava, mas seu subconciente guardava tudo e
o castigava há 20 anos, a respeito daquela garotinha. Em 1990, ano de
campanha para deputado estadual, os investimentos na política foram muito
altos, as cobranças dos partidos por resultados eram ferozes, e era
necessário fazer uma campanha mais arrojada, pois a chefia não permitiria
menos de 30 mil votos. A política é assim, ao entrar, o tipo de cobrança e
anseios desvia os valores e objetivos dos mais honestos, é preciso ser uma
fortaleza para se manter integro nesse meio. Preocupado com seus investimentos,
conseguira apoio da televisão estadual para fazer 2 minutos de campanha em
horário ao vivo. Mobilizaram-se diversos seguidores políticos que o ajudaram
com muito esforço, a visitar locais carentes e prometer coisas
descontroladamente, sem nenhum tipo de planejamento, essas ações infelizmente
fazem parte desse jogo. Um minuto de seu horário foi destinado a uma área
carente, sem hospital, luz e escolas por perto. Nessa área uma garotinha de
três anos foi a escolhida para estar em seu colo. Era uma criança iluminada,
tinha os olhos vivos, uma energia intensa, dessas de quem vem com uma missão na
terra. E mesmo com as pressões que este homem estava sofrendo, seu coração se
tornava terno, a garotinha o tinha alcançado. Mas o jogo precisava continuar,
seu coração voltou a ficar duro, esquecido da bagagem e missão para a qual veio
a terra e o horário foi gravado. Ele, sem saber se teria a verba para executar
aquilo, sem planejamento algum, prometeu a essa comunidade hospitais, luz, uma
escola e um parquinho. A gravação tinha sido um sucesso e todos comemoraram.
Na gravação que foi ao ar, a imagem da garotinha lhe dando tchau, viveria
para sempre no fundo da memória desse homem. Ele se elegeu deputado nesse ano
com 35 mil votos, as ansiedades passaram,
ultrapassou os 30 mil votos, após
se eleger ocorrem outras pressões que descomprometem tudo o que foi prometido à
população, é complexo e difícil de explicar, os interesses são confusos, as
linhas de poder se chocam, o dinheiro é direcionado de maneira pesada, lenta,
inconseqüente. Os hospitais, os parquinhos as escolas, os negócios e as
pressões políticas não lhe permitiam lembrar de nada, o jogo continuava,
nenhuma agenda, nenhuma anotação. A garotinha teve uma forte pneumonia, seus
pais foram ao hospital da cidade, ela foi medicada, e voltou a casa. No dia
seguinte de manhã ela passava bem, queria brincar de novo na rua, teve uma
rápida tosse, precisava novamente de atendimento urgente, mas o hospital era
longe e não havia transporte no momento. Morreu aos 4 anos no braço da
mãe a caminho do hospital. Teve um enterro humilde, deixou atrás de si uma
grande dor e muita alegria que ainda teria para viver. Nessa comunidade morava
a amiga da amiga da empregada da casa do deputado; entre as pessoas humildes as
noticias ruins correm rápido, gostam de espalhar a todas horas essas notícias
que abalam o coração de todos.O deputado perguntou se tinha alguma culpa disso;
em seguida lembrou-se da feroz e confusa disputa de verba e se aliviou ;
se sensibilizou, mas não sentiu responsabilidade alguma por seus atos.
Então naquela tranqüila tarde,
estranhamente a imagem da garotinha lhe vinha a mente com mais freqüência. Só
aí ele percebeu que aquilo o atordoara por anos: aquele hospital não feito,
a falta de verbas, aquela disputa por poder, não era nada com ele, mas algo
dentro dele o forçava a se dar uma satisfação. E assim.atordoado, foi dormir.
Sua mulher que sempre dormia com ele, naquele dia dormiu no sofá, sentada vendo
a novela. O senhor dormia profundamente e certa hora viu a imagem da garotinha
no seu quarto; seu coração quase lhe veio a boca e uma grande quantidade de
energia reprimida por anos desabou sobre seu corpo e, sentindo alivio e
susto ao mesmo tempo, percebeu que a imagem era ilusão, procurou a mulher e não
a achou; a energia gasta por ver aquela imagem tinha sido tanta, que não
conseguia se levantar, retornou ao sono. Então sonhou com o lugar onde nasceu,
com sua humilde mãe, pai e irmãos, de sua comunidade no interior da Bahia, da
ajuda mútua que havia naquele lugar, de como se distanciou de tudo, de como a
ferocidade do mundo com seus interesses o afastaram de suas origens . E
nesse sonho, ele sentiu uma grande dor sobre seus pulmões, uma dor que era
absurda para uma criança de 4 anos e um senhor de 75, toda a sua cabeça e seu
corpo haviam sido transferidos para o momento em que a garotinha tinha
falecido, procurava a sua mulher ao lado da cama, meio acordado e meio
dormindo, mas não achava nada, ela dormia profundamente no sofá, o grito forte
e estrondoso da garotinha triturava sua cabeça e todo seu corpo, procura
explicações para tamanha energia e não achava. A garotinha pedia para ele
cuidar dela, ele não conseguia responder. Em certo momento ele pegou
desesperado na mão da menina e lhe disse: prometo que cuido de você
querida, para toda a eternidade e os olhos da garotinha brilharam e o coração
do homem não agüentou de emoção. Sua última lembrança de vida, era ele saindo
de seu corpo, colocondo-a no colo, ela o abraçava com muita confiança, eles por
fim haviam se encontrado. Tivera uma morte feliz.