Pião de Trecho
Daniel Vidigal Duarte Souza
Foto: http://www.tribunafeirense.com.br
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CAPITULO 1
Fevereiro
de 1992
Domingo
a tarde era dia de jogo entre os bairros da cidade de Cachoeira no interior da
Bahia. Estes, aconteciam em um campo na beira do rio Paraguaçu que ficava nas
propriedades da Família Nascimento. A origem da família era um casal de
escravos que foi morar ali em 1872 e aos poucos, filhos, amigos, primos e
conhecidos foram chegando e ocupando aquelas terras ao lado do rio.
O
time da família Nascimento estava jogando naquele dia com outro time formado
por por amigos que gostavam de futebol e se intitulavam o time da praça. A
faixa etária dos garotos variava entre 16 a 20 anos, enquanto eles se divertiam
as famílias e as namoradas torciam do lado de fora e a rivalidade entre os dois
times era grande. No time da Família nascimento havia um grande entrosamento
entre três primos: Israel (17 anos), Jeremias (21) e Pedro (18). O Juiz era o
mesmo há muitos anos, seu nome era João Manoel, mas como sempre apitava com
cara de preocupado seu apelido era Cara de Jaca, e das laterais as pessoas
gritavam:
-
Deixe de roubar Cara de Jaca. Ladrão... ladrão... descarado. Há há ha o cara de
jaca ficou doido. Cara de jaca tomou foi muito leite de cabra estragado quando
era pequeno.
Aos
20 minutos do segundo tempo (a partida durava dois tempos de 25 minutos) o jogo
estava um a um. Do nada uma bola sobrou para Pedro na entrada da área, ele
friamente dominou e chutou no cantinho. Gol! Os três primos se abraçaram e
comemoraram bastante. Carine a namorada do Pedro vibrou muito, esta estava na
flor da idade com 17 anos e era uma linda mulata que exalava o frescor da vida,
estava apaixonada e vivia seu primeiro amor. Israel não tinha namorada naquela
época, ele curtia estar com uma e outra. Jeremias já estava noivo de Luíza e já
existia um bebê a caminho, seu pai tinha lhe dado um cantinho de terreno na
beira do rio para que ali ele pudesse construir sua casa próxima a família.
Quando
o jogo acabou todos correram para o churrasco e as duas torcidas viraram uma
só, ali as famílias conversavam bastante dos diversos e simples assuntos da
vida. E a tarde foi chegando ao seu fim, o sol foi se pondo, a cervejinha bem
gelada não acabava. Alguns homens iam ficando bêbados, outros tomavam uns
puxões de orelha de suas mulheres e tinham de ir cedo para casa...e o sol foi
raiando sobre o rio com a linda vista da pedra do cavalo. Pedro foi para casa
tomar banho para mais tarde se encontrar com Carine, ele tinha uma bicicleta de
marca barra circular, o mesmo colocou Carine na garupa para apreciar o rio
durante a noite, eles foram ganhando a floresta, a lua, os beijos foram
evoluindo, o vestido que ela usava era sedutor, o short que ele usava era
escancarado, para eles a noite não tinha limites.
No
dia seguinte a vida continuava e existia um lado duro e impiedoso na realidade
dessas pessoas. Seu Samuel, pai de Pedrinho, ganhava a vida criando galinhas e
vendendo sucos e ovos na cidade. O sol não tinha pena e cada dia vencido era
motivo de muito orgulho para Samuel. Sua esposa se chamava Laurenice, e além de
Pedro eles tinham tido a caçula Juliana. Pedro e Juliana iam a escola por
conselho do pai, ele lhes recomendava uma vida diferente daquela. Pedro
pedalava todos os dias 12 km para ir e vir carregando sua irmã. Dona Laurenice passava
o dia cuidando da casa, da comida, das roupas... era uma mãe muito carinhosa. Samuel todos os
dias a noite contava antigas histórias dos tempos de escravidão, essas eram
passadas de pai para filho e certo rancor pela burguesia da cidade não morria
nunca, o céu era limpo e estrelado. O pai de Jeremias e Israel tinha uma
barraquinha na feira da cidade, Seu Mariano tinha uma condição de vida um pouco
melhor, ele comprava mercadorias do Paraguai para revender em uma barraquinha
na feira da cidade: carteiras, boné, óculos, relógio, blusas, bermudas,
pochete, etc.
No
sitio da Família nascimento habitavam aproximadamente 200 pessoas distribuídas
entre 12 familias, todos de certa forma eram primos e parentes. Ali existia uma
união muito grande e ao mesmo tempo um número de picuinhas insuportáveis. Mesmo
com as picuinhas, quando alguém tinha um problema a comoção era geral e todos se
uniam para ajudar quem estava precisando.
CAPITULO 2
Fábrica de Papel
O
anuncio da construção de uma fábrica de papel foi feito na cidade. Uma grande
confusão de ideias tomou conta de todos, alguns diziam que a fábrica era o fim,
para outros marcava a chegada do desenvolvimento. Israel, Jeremias e Pedro
passaram por perto para se interar do assunto, no começo pouco se interessaram.
Mas a medida que a construção foi evoluindo algumas pessoas que nela
trabalhavam começaram a comprar bicicletas bonitas, motos a prestação, televisão,
vídeo cassete, etc. Conseguir emprego na construção da fábrica foi se tornando
um sonho para todos os jovens da cidade. Uma bela manhã os três primos
decidiram ir a procura de emprego, lá foram de bermuda, havaianas e boné. Para
eles seria mais divertido chegar lá andando e desse jeito foram. No caminho iam
se fazendo brincadeiras, e diziam:
-
Esses emprego é tudo é nosso.
Iam
como se fossem os donos do mundo, quando chegaram perto avistaram de longe um
parque de equipamentos e apostaram corrida até o ponto. Para surpresa de todos lá
havia grande número de homens aguardando que alguém chegasse ao lado de fora
para pedir uma oportunidade de emprego. Aquilo de certa forma foi um pouco
chocante para eles, pois havia muitos pais de família conhecidos implorando
para aquelas pessoas que passavam de longe. Ali passaram o dia e nada
aconteceu. Pouco se importaram e na volta decidiram tomar banho no rio, havia uma
grande arvore na beira que servia de trampolim para os garotos brincarem. Mal
tinham percebido e já era noite, era hora de retornar a casa tomar um café e
dormir.
Dois
dias depois Carine incentivou Pedro a ir lá novamente. Mas dessa vez sem boné,
de calça e pegando carona de moto com o vizinho. Pedro foi sozinho sem avisar
nada aos primos. Ele chegou bem mais cedo com os olhares compenetrados no objetivo.
A medida que o dia ia evoluindo as pessoas iam embora, ele estava determinado e
ali mesmo ficou. Um sentimento de raiva ia tomando conta por ninguém ter ido falar
com ele. Já eram sete horas da noite e apenas o engenheiro da obra permanecia
no canteiro e o garoto não queria sair dali sem falar com ninguém. Próximo às
oito horas o engenheiro saia do canteiro rumo a sua pousada quando observou
aquele garoto ali agachado olhando para ele.
-
Boa noite, o que faz aí?
-
Eu quero emprego.
-
Como é seu nome?
-
Pedro.
-O
meu é Aluízio, vamos te dou carona.
O
engenheiro deixou Pedro próximo a sua casa e a única frase que pronunciou foi:
-
Esteja aqui amanhã as 7 horas que iremos a obra.
Então
Pedro foi a casa de Carine e lhe contou o ocorrido. Ela quase que não
acreditava de tanta emoção e os dois quase que não dormiram de tanta ansiedade.
No horário marcado ele compareceu. Chegando dentro da obra, o ambiente era sujo
e agressivo, a estrutura era precária e as pessoas se aglomeravam em containers.
O Engenheiro Aluízio mandou chamar sua secretária e lhe disse:
-
Da região, como fazemos para contratar ele como ajudante?
-
Ele pode começar a trabalhar hoje, sábado o mandamos ao médico e depois
assinamos a carteira.
-
Ótimo, mande chamar o encarregado das bases, por favor.
Otamar
o encarregado entrou no container e deu bom dia. Este era um homem de seus
cinquenta anos, mas aparência era de 60, ele sorriu de um jeito alegre,
malicioso e desconfiado ao mesmo tempo. E se pronunciou:
-
O que é que tá precisando Engenheiro?
-
Seu novo ajudante, ele é da região. Quer trabalhar.
-
Muito bom, muito bom. O menino quer trabalhar né? - E sorriu avaliando Pedro.
Pedro
estava tímido, desconfiado e empolgado. As emoções que passavam pelo garoto
eram bem confusas.
-
Quanto vou ganhar?
-
522 mil cruzados por mês- se pronunciou Aluízio.
Nesse
momento os olhos de Pedro se encheram de emoção, pois seu pai com toda
experiência que tinha na vida quando tirava muito dinheiro eram 400 mil
cruzados no mês. Pedro saiu com o encarregado das bases rumo ao campo. O garoto
sequer sabia se iria ter vaga na escola a noite, mas ele não se preocupava mais
com isso, só enxergava o salário que receberia no fim do mês e nunca mais na
vida colocaria os pés na escola. Quando chegaram ao campo Otamar se pronunciou
como seu chefe:
-
Garoto, aqui você tá pá adiantar meu lado. Trabalhar e cumprir as meta dos
homi. Se não me atender é rua. O que você sabe fazer?
Pedro
ficou nervoso e sem resposta.
-
Sabe carregar cimento? Tá vendo aqueles saco ali, quero tudo dentro do galpão.
Vamos! – falou Otamar em um tom forte e sério.
Pedro
carregou todos os sacos de cimento e chegou ao fim do dia cansado que nem ele
acreditava. Às vezes ele ajudava seu pai, mas nunca tinha feito um trabalho tão
duro. Otamar no fim do dia passou para conferir e nada disse. Quando Pedro
chegou em casa sujo de areia e cimento todos queriam saber o motivo, ele sorriu
e disse que tinha conseguido emprego. Carine vibrava bastante, seus pais também,
rapidamente chegaram Jeremias e Israel querendo saber o motivo do alvoroço.
-
To empregado primo.
-
Mas como, porque que não avisou a gente que foi atrás de emprego?
-
Porque o engenheiro me chamou, só eu.
-
Mas você pudia ter chamado nóis também.
-
Vamos me abracem.
E
os três primos se abraçaram, mas Jeremias e Israel guardaram certo
ressentimento pelo ocorrido. Já Carine não disfarçava o orgulho que sentia do
seu namorado.
CAPITULO 3
Trabalho Duro
A
vida continuou boa para Pedro, pois apesar trabalho árduo ele estava em casa
todos os dias e tinha tempo para o futebol e a namorada. À medida que foi
ganhando dinheiro sempre ficava de olho na compra de coisas que nunca tivera
acesso. Primeiro ele colocou na cabeça que iria comprar uma televisão de dez
polegadas para colocar em seu quarto. Pagou a primeira prestação e dividiu o
restante em doze vezes, quando a trouxe para casa todos os vizinhos se
aglomeram para ver a chegada, este estava muito orgulhoso de sua nova
conquista, pois a televisão era de imagens coloridas e a outra que havia em sua
casa era pequena e as imagens eram em preto e branco. Pedro decidiu que a
televisão ficaria na sala e aquele seria um presente para a família.
Carine
continuou na escola e à medida que seu namorado ia se firmando no emprego seus
sonhos iam se tornando mais palpáveis, Pedro era um rapaz muito bom e agora
trabalhando ela já pensavam em casamento. A camisinha e a preocupação por
gravidez foi ficando de lado por ambas as partes, a coragem de enfrentar uma
vida a dois foi aos poucos se tornando real.
Na
obra tantos nos dias de sol como nos dias de chuva o encarregado Otamar não
aliviava para ninguém. O ambiente na obra era extremamente competitivo e como
Otamar haviam mais três encarregados: Cirio, Iran e Ulisses. Todos eram de cidades
distantes a cachoeira e faziam de tudo para convencer o Engenheiro Aluizio que
a mão de obra local não era boa, o objetivo dessa articulação era trazer
parentes e amigos de suas cidades. Cirio era de Salvador, Iran de Nazaré das
Farinhas, Ulisses de Santo Amaro e Otamar de Santo Antonio de Jesus. Por esse motivo Pedro não podia vacilar. Ao
comando de Otamar havia 16 pessoas, sendo que sete eram Santo Antonio de Jesus,
quatro eram de cachoeira (incluindo Pedro) e os outros cinco eram de Salvador. Os
sete que eram mais ligados ao encarregado se aglomeravam e se comportavam como
uma “panelinha“. Entre eles e o encarregado Otamar os erros eram toleráveis, se
o mesmo erro acontece com alguém de fora da panelinha a punição era maior.
Pedro era um menino inteligente e notou que de nada adiantava bater de frente
com Otamar e seu grupo, ele foi aos poucos ganhando a confiança do feudo, mas
em momento algum Otamar tirava a mira dos demais garotos, sempre dizia ao
Engenheiro Aluízio:
-
Esses meninos aqui da região são muito folgado, deixa eu traze meus meninos de
Santo Antonio e você vai ver o que é trabalho.
O
engenheiro escutava desconfiado sem emitir nenhuma opinião a respeito do
assunto. Otamar tinha uma visão estratégica da obra e seus interesses na
maioria das vezes eram pessoais. Era o encarregado mais próximo a Aluízio e o
que conseguia os recursos do empreendimento com mais facilidade. Sua palavra
era quase que lei para o engenheiro, o mesmo se sentia ajudado pelo encarregado
e não enxergava as picuinhas que ele gerava no ambiente de trabalho.
Pedro
fez bons amigos no empreendimento: Isac era de outro bairro de cachoeira, assim
como ele estava em seu primeiro emprego e também queria comprar eletrodomésticos
para a sua casa. João era de Nazaré das farinhas e estava ali por indicação do
encarregado Iran. Josias era de Cruz das Almas que ficava a uns vinte
quilômetros do empreendimento, ele ia e voltava todos os dias. O futebol de
Pedro que era familiar aos poucos mudou um pouco de foco, pois o pessoal da
obra sempre marcava para jogar os domingos pela manhã, Pedro foi permitindo que
esse novo mundo invadisse sua vida e foi se afastando aos poucos dos primos
Israel e Jeremias. O garoto no horário da noite não queria mais saber de
escutar as estórias do seu Samuel, preferia na maioria das vezes tomar uma cervejinha
com o pessoal da obra. Más ele nunca perdeu de vista em ajudar a sua família
com parte do salário.
Pedro
ganhou de seu pai um terreno na beira do rio e aos poucos ele foi construindo. Em
um fim de semana quando precisou bater lajem para a construção da casa todos na
vila o ajudaram... Pedro tinha se tornado um pouco interesseiro, pois passou a
não ter tempo para os outros quando alguém precisava dele.
Jeremias
foi perdendo o interesse em trabalhar na fábrica de papel, uma dura realidade
se aproximava de sua vida que era o nascimento do primeiro filho, este se
ofereceu para ajudar seu Mariano em troca de um pequeno salário, mas seu pai
fez diferente, lhe deu uma pequena quantidade de dinheiro para que ele pudesse
comprar e revender mercadorias. Jeremias mostrou grande habilidade para
comercializar e em pouco tempo já tinha uma barraquinha na feira, na qual o
sustento de seu filho estava garantido. Era uma vida estressante de muita
preocupação, pois o salário no fim do mês não era certo e o dinheiro circulava
em sua frente, mas se o mesmo não rendesse acabava. A flexibilidade era um
pouco maior, os horários eram os da feira e apesar de acordar cedo todos os
dias, quando era de tardinha o mesmo já estava em casa e como dono do negócio
era dono do seu tempo. Diferente de seu pai ele tinha ganância (também queria
eletrodomésticos) e trabalhava muito mais. Este como Pedro passou aos poucos a
ajudar seu pai que não acompanhava o embalo do filho.
Israel
pouco queria saber de trabalho e compromissos fixos, seu foco era mulher,
farras, bebidas... sempre que podia ele ganhava dinheiro capinando terrenos,
fazendo serviços de pedreiro informalmente, ajudando seu pai, etc.
Nesse
ritmo as vidas de Pedro, Israel e Jeremias foram tomando seus rumos. Pedro se
casou e em pouco tempo Carine engravidou. Jeremias engravidou Luiza pela
segunda vez. Israel fez um filho em uma menina da vida, quanto mais velho ficava
mais irresponsável se tornava. Dois anos
se passaram.
CAPITULO 4
Greve
Tiago
o primeiro filho de Pedro tinha nascido e Carine já esperava pelo segundo neném,
a vida de casado tinha as suas dificuldades, porém, havia vários aspectos
compensadores... Ela era uma esposa muito carinhosa e preparava um lanche bem
gostoso todos os dias no final da tarde. Ele por sua vez tinha pique para
chegar em casa e brincar com o filho, o nascimento da criança tinha iluminado
aquele lar e era um grande combustível para que eles superassem as dificuldades
de uma vida a dois. Fim de tarde era hora de olhar o rio com a criança e
passear pelas ruas. Carine conseguiu concluir apenas o segundo grau na escola,
pois tinha muita responsabilidade em casa.
Jeremias
com duas crianças em casa tinha um pique parecido, porém, a inconstância da
feira o deixava com uma instabilidade financeira um pouco maior. O nome de seus
filhos eram Julio e Marina, estes sempre brincavam juntos com Tiago,
principalmente na beira do rio.
Israel
bebia quase todo dias e pouca atenção dava ao seu filho Paulo que tinha
nascido, tinha um bom coração, mas não conseguia rumo na vida, não parava quieto
com uma mulher e trabalho estável nem pensar. Mas continuava o garoto bom e
amigo de todos os primos. O casamento, as responsabilidades e as novas amizades
tinham deixado os três um pouco mais distantes, mas o vinculo familiar
continuava forte.
O
ano de 1994 era ano de eleições e os sindicatos em geral estavam fazendo muita
fiscalização nas obras. Os trabalhadores da fábrica de Papel eram vinculados ao
SINDCELL, Sindicato dos trabalhadores do ramo de celulose, este vinha sofrendo
influência política de alguns partidos de oposição. O encarregado Otamar era
amigo do presidente do Sindicato e tinha lhe comunicando tudo o que acontecia
de errado no empreendimento. Em maio daquele ano o pagamento dos trabalhadores
da fábrica de papel estava atrasado três dias e não tinham previsão para
solucionar o problema. Pedro estava contando com o dinheiro para fazer a feira
e ajudar seu pai, o salário nunca tinha atrasado e o mesmo já estava quase
passando fome junto a família e seu pai.
Otamar
comunicou ao presidente Jorge do Sindicato que o ambiente de trabalho era
favorável a uma paralisação. Aluízio estava muito preocupado com a situação, o
dinheiro simplesmente não saia e a empresa lhe dizia calmamente que ele tinha
que esperar. Otamar bem traiçoeiro dava conselhos ao engenheiro:
-
Senhor Engenheiro manda sair logo esse pagamento, os pião tá tudo doido, to
preocupado bastante.
E
ao mesmo tempo por telefone indicava ao Sindicato:
-
O negocio aqui tá feio, os pião tudo passando por necessidade, e os homi nem
aí. A gente precisa de ação já, só parando para esses homi resolver nosso
problema.
Então
no dia 08 de Maio de 1994 o sindicato estava na entrada da obra com uma pampa e
um grande auto falante no fundo, o presidente iniciou o discurso:
-
Trabalhadores, bom dia, é com muita honra que tenho o prazer de estar aqui com
todos vocês nesse momento tão complicado, pois é de meu conhecimento que o
Patrão os obriga a trabalhar para no fim do mês não querer pagar. Senhores isso
é verdade?
E
coro levantou a voz:
-
Éeeeeeee.
-
Por tanto senhores eu que ando quarenta anos em obras, nesses trechos, eu que
tenho visto homens como esses donos dessa fábrica de papel enricarem com o suor
dos trabalhadores, percebo que uma ação mais drástica deve ser tomada. Todos
nós sabemos que as riquezas do Patrão é fruto do sangue que o trabalhador doa
no campo. Nossas peles são abençoadas por Deus, só os guerreiros aguentam o sol
do meio dia, quando sacos de cimento devem ser carregados, a massa deve ser
misturada, os tijolos devem ser colocados...
Nessa
linha o presidente do Sindicato foi discursando, os trabalhadores foram ficando
emocionados com as palavras do Presidente Jorge, naquele momento eles tinham a
impressão que podiam tudo, que eles mesmos eram os donos das fábricas. Os
gritos agressivos ao Engenheiro Aluízio eram aplaudidos, um sentimento de
justiça, de trabalho, a raiva pelo atraso, tudo ia tomando conta dos
trabalhadores. Pedro escutava tudo, o mesmo estava passando fome, e naquele
momento o Engenheiro Aluízio e a empresa eram as piores coisas que existiam,
ninguém sabia que seu Samuel seu pai também estava passando fome, seu filhinho tinha
tomado pouco leite naquele dia, o leite tinha sido dado por Jeremias. Uma
grande emoção foi tomando conta de Pedro, as pessoas precisavam saber o que
estava acontecendo de verdade, aquele herói corajoso que jogava palavras
agressivas contra Aluízio precisava saber o que se passava com ele. Foi então
que tomado pela emoção ele praticamente tomou o microfone das mãos de Jorge e
iniciou seu discurso:
-
Gente, meu filho só teve leite hoje porque meu primo pagou ao leiteiro um litro
para mim, eu to comendo pão dormido, meu pai queria minha ajuda mas num teve.
Tá todo mundo lá em casa precisando desse dinheiro, minha mulher teve que ir na
casa da mãe pagar um cacho de bananas. Nois temo que entender o que? Que a
empresa tá com problema de banco, temo é nada. A empresa tem que pagar logo
todos nós, se não nois vai passar fome.
Então
Jorge fez um gesto indicando uma foto ao fotografo do sindicato, pegou
novamente o microfone e se pronunciou:
-
Pessoal, eu quero saber quem o Patrão que vai explorar trabalhador aqui hoje? Eu
quero saber quem é o trabalhador que produzirá riquezas em vão? Eu conheço a força
de vocês, conheço o grito da conquista... quem será explorado aqui hoje que
fique em silencio.
Falou
num tom forte e contagiante, os
trabalhadores responderam:
-
Vamos para casa.
Em
menos de cinco minutos não havia mais ninguém em frente a obra.
CAPITULO 5
Conseqüências
Pedro
quando chegou em casa explicou a família o ocorrido, o mesmo tinha sido
corajoso em lutar pelos seus direitos, a partir daquele dia os exploradores
nunca mais iriam deixar de pagar, tinha passado a conhecer a força do trabalhador,
o Jorge iria lhes defender para sempre. Seu pai Samuel que pouco sabia de
trabalhos de carteira assinada, mas muito sabia da vida informou que o mesmo se
precipitou:
-
Filho, você deveria ter tido um pouco mais de paciência, esses sindicalistas
viajam o país atrás de bagunça e depois vão embora. Nois do campo devemos lutar
pelos direito, mas também devemo cuida do nosso ganha pão, filho acho que você
foi um pouco inocente.
Pedro
tentou argumentar de todo jeito para seu pai, sua irmã escutava tudo com muita
atenção, mas não conseguiu convencer. Samuel finalizou a conversa:
-
Agora só resta rezar a Deus.
No
dia seguinte todos retornaram ao trabalho como se nada tivesse acontecido, a
secretária de Aluízio avisou que poderiam sair ao meio o dia com o cheque em
mãos e recolher o pagamento no banco. O Gerente regional, Rodrigo, que era
chefe de Aluízio estava na obra naquele dia, ele não aceitava a greve mesmo com
o atraso do pagamento.
-
Aluízio, que porra de controle é esse que você tem sobre seus funcionários, que
apenas quatro dias de atraso são suficientes para uma paralisação? Que caralho
de chefe de obra você é?
-
Fui surpreendido, o Sindicato apareceu aqui sem avisar, sequer nos deu uma
chance de negociar. E rapaz, o pior de tudo, vocês pagaram depois da
paralisação, fica parecendo que só funcionamos sobre pressão. Sinceramente é
muito complicado segurar essa turma com atraso de pagamento. ..
Ficaram
discutindo nessa linha durante uns cinco minutos, o sindicalista Jorge seguiu
para o sul da Bahia para realizar novas fiscalizações, em cada obra o mesmo
tinha seus informantes e isso facilitava as paralisações. Otamar circulava do
lado de fora da sala, o mesmo dava tudo por saber o que aqueles dois
conversavam. Ele bem oportunista, bateu na porta e entrou:
-
Bom dia Seu Engenheiro, agora eu quero saber o que vamos fazer com os grevista?
Bota para trabalhar ou coloca eles para a rua.
Rodrigo
se interessou pelo assunto e perguntou:
-
Como assim grevistas?
-
Esses menino aqui da região, foi quem fizeram a greve, tudo grevista, não
gostam de trabalho não, é só dor de cabeça.
Aluízio
ficou pensativo e deu sua opinião:
-
É verdade, todo o movimento de paralisação foi realizado por um menino da
região que eu mesmo contratei, devemos fazer uma limpeza.
-
Tudo bem, Aluízio agora não é momento de demitir grevistas, deixa a poeira
baixar e você os demite como corte de gastos, assim terá tempo para melhorar a
sua equipe. Você tem 45 dias- finalizou Rodrigo fechando sua pasta e indo
embora.
Cada
dia de trabalho era terrível para Pedro, assim como Samuel tinha alertado o
sindicalista Jorge ganhou o mundo e nunca mais apareceu, a vulnerabilidade em
relação ao patrão voltou ao normal, o comportamento estranho do encarregado
Otamar o assustava. Sua vida já era cheia de compromissos e para complicar
ainda mais sua situação financeira Carine estava grávida de novo. Ele se
arrependia todos os dias de ter subido naquela pampa discursar. O engenheiro
Aluízio não falava mais direito com ele e isso também o preocupava.
Exatamente
após 45 dias do término da greve Pedro e todos de Cachoeira da equipe de Otamar
foram demitidos. No dia seguinte os substitutos chegaram, todos eram de Santo
Antonio de Jesus, a mesma cidade de Otamar. Em poucos meses a situação
financeira da obra voltou ao normal, o sindicalista Jorge se elegeu deputado
estadual e Pedro ficou desempregado com três bocas para alimentar. Pela primeira
vez na vida sentiu de verdade o peso, a crueldade e as injustiças que o mundo
reserva a algumas pessoas.
CAPITULO 6
Desempregado
No
dia em foi demitido Pedro olhava o rio, as arvores, sequer sabia com que cara
iria chegar em casa. O dinheiro já estava curto com o emprego... agora
desempregado o mesmo não tinha tempo de processar o ocorrido. Aquele fora seu
primeiro trabalho e com ele havia estabelecido a projeção de uma nova vida.
Pensava em sua vida gostosa de casado, em Carine grávida de novo, no Som, no
fogão, na geladeira, no sofá... naquela casinha arrumada, mas ele precisava
estar trabalhando para manter todos aqueles sonhos. Suas responsabilidades e
obrigações lhe pesavam como uma navalha. Um sentimento de ódio de Otamar e
Aluízio tomou conta dele, se arrependia de ter subido naquele palanque, mas
vida de pião é assim, não é dono de empresa, um dia pode estar trabalhando o
outro pode estar na rua. A ideia de Carine grávida. Há! Essa era a pior de
todas, a chegada de cada eletrodoméstico em sua casa, dos presentes comprados
para seu filho. O termo utilizado para a
demissão do pião de trecho é “amarrar a lata”, a primeira amarração de lata o
pião nunca esquece. Chegando em casa deu
a noticia que fora demitido, sua esposa teve sensações parecidas e de
desepero... mas foi mas sábia que ele e lhe instruiu que mantivesse a calma,
haviam direitos a receber até trabalhar de novo. Poucos dias depois ele recebeu
todo o dinheiro do seu processo demissional, a grana era boa, mas a sensação de
desemprego dilacerava a auto-estima. E as prestações dos móveis e dos
eletrodomésticos eram pesadas. Em poucos meses após a demissão nasceu sua filha
e deram lhe o nome de Gabriela, a alegria tomou conta da casa, um bebê animava
os ânimos de todos, mas os compromissos permaneciam. Até que a grana acabou, então ele virou um leão e começou a
ganhar dinheiro com o que aparecia, sua experiência em obras lhe permitia um
número grande de trabalhos informais, mas esse dinheiro não era suficiente para
equilibrar as contas, pois haviam muitas prestações. Carine percebeu que o
problema de todo aquele desgaste estava nas contas atrasadas dos bens materiais,
então lhe sugeriu que tudo fosse vendido e assim poderiam viver com pouco, mas
em paz, ela escutou:
-
Tá doida, vamo andá pá trás é mulé? Já já eu acho outro emprego, daqui de casa
num sai nada, é tudo nossas conquista.
Em
pouco tempo Pedro se tornou estressado e pouco carinhoso, trabalhava demais e
instabilidade financeira acabava com ele. Ele tinha certeza que a qualquer
momento um novo emprego bom iria aparecer. Um dia ele foi pedir dinheiro
emprestado ao seu primo Jeremias e escutou:
-
Pedro, tu nem um sofá milho que o meu, tua televisão é colorida... tu que se
livrar das divida? Vende tuas coisa.
Por
algum motivo na mente de Pedro ele achava que Jeremias tinha a obrigação de
arcar com suas dívidas. O mesmo saiu em direção ao rio nervoso e inconformado, lá tomou um banho para ver se
passava o estresse, em vão. Diferente do primeiro filho, agora era um pai
emocionalmente um pouco mais distante com Gabriela.
CAPITULO 7
Trecho
O
meses foram passando e as dívidas de Pedro só aumentavam, não conseguia de
jeito algum equilibrar os gastos com as receitas. Seu casamento foi se tornando
uma bomba, brigavam praticamente todos os dias:
-
Que culpa eu tenho se fui demitido. Tu acha que eu queria essa falta de
dinheiro? Tu acha que eu gosto de olhá pá cara do gerente nojento do banco, que
só fala enrolação e me dá mais juro?
-
Eu não saí de casa para viver esse inferno- respondia Carine.
Seu
Samuel tentava intervir, mas Pedro não o escutava. Sem dinheiro e falta de
habilidade para lidar com a situação o casamento estava por um fio. Ele tinha
apenas vinte anos e ela dezenove. No intuito de relaxar ele começou a tomar cachaça
todos os dias e sempre que podia jogava uma sinuquinha com Israel. A
reaproximação com o primo foi inevitável, adepto dos trabalhos informais, estar
com ele era como uma fuga, um convite para se desligar da realidade. Quando
Pedro chegava em casa bêbado, uma nova briga explodia com Carine. No dia
seguinte ele ia trabalhar amargurado: limpava terrenos, trabalhava de pedreiro,
carregava caminhões, colhia laranjas, etc. Ficou com fama de grevista e não
conseguia assinar a carteira em outros lugares. Sua luta sempre lhe permitiu
que não faltasse comida em casa, viveu um grande estresse, mas de maneira
alguma passou fome. A família de Carine começou a falar mal dele:
-
Menina, cuidado para não virar homem de farra e te deixar com as duas crianças.
Homem quando fica desempregado e começa assim, é só ladeira abaixo.
Pedro
estava a ponto de explodir com tanta pressão, tudo ao seu redor ia contra ele,
mas o mesmo também não conseguia direcionar as energias para as coisas certas.
Certo
dia ele estava jogando sinuca com Israel e um homem se convidou para jogar. Era
um homem de seus cinquenta anos e tinha o semblante bem cansado, seu nome era
Ulisses. Juntos os três foram tomando cachaça e conversando futilidades. Até
que uma hora ele perguntou para Pedro:
-
O que faz da vida?
-
Trabalhava nas obra, mas agora to desempregado e vivo do que aparece para eu
fazer.
-
Aqui tem pouca obra, num presta não. Tú tem sangue no olho para viajar e
trabalhar fora. Sou da montagem industrial. Amanhã a tarde saio com toda a
minha equipe para Cubatão em São Paulo, vai ter uma ampliação lá. To precisando
de mais um pião para ir cumigo. Tu tem carteira? Quer vir?
Pedro
ficou calado. Então Ulisses completou a proposta:
-
Lá com as horas extras dá para tirar dois salários. Bem facinho.
Então
Pedro que estava carregado de ódio, cansado e disposto a manter o padrão de
vida, respondeu:
-
Tô dentro.
-
Você tem que tá amanhã cinco horas da tarde de mala arrumada na rodoviária.
Naquele
momento Pedro queria que toda a família de Carine soubesse o quanto ele é bom,
ele sim sabia conseguir os empregos... iria voltar a pagar as contas, de
maneira alguma tinha medo do mundo, conhecia outros homens que viajam e pagavam
todas as suas prestações.Como o casamento não ia bem e estava emocionalmente
distante dos filhos, o dinheiro estava em primeiro plano. Chegou em casa bêbado
naquele dia, por isso deixou para dar a noticia para Carine no dia seguinte.
Quando ele acordou, a primeira coisa que ela disse:
-
São oito horas já. Trabalha mais não?
-
Arrumei foi empregão, vou tirá dois salário. Vou hoje de tarde para São Paulo.
-
Mas Pedro, tu tá sendo afobado. Eu posso procurar trabalhar também. Tem muito
restaurante aí precisando de menina boa.
-
Mulhé minha num trabalha não, fica em casa cuidando dos meus filhos.
-
Deixa de ser abestalhado. Tu vai cair nesse mundo, sendo que podemos resolver
tudo por aqui.
-
Vou me embora hoje as cinco horas da tarde.
Então
Carine percebeu que todos os seus argumentos seriam em vão. Ele estava
resolvido a viajar, estava tomado por algum ódio que ninguém, nem ele mesmo,
conseguia explicar. No fim da tarde ele ficou um pouco reflexivo, nunca na vida
tinha visto aquele homem, sequer sabia como era São Paulo... apenas se lembrava
de algumas cenas de novelas. Olhava para o filho, para a filha...
As
quatro horas em ponto ele estava na rodoviária com Carine e as duas crianças,
Tiago chorava sem parar, de algum modo ele sabia que seu papai iria para longe.
Gabriela estava apenas com quatro meses. Aos poucos outros trabalhadores foram
chegando com suas esposas, eles conversavam sobre o escopo da obra em Cubatão:
-
Lá serão duzentas tonelas de tubulação e noventa de estrutura.
-
Negativo companheiro, ali serão trezentas
de tubulação e cento e quarenta e cinco de estrutura.
-
A Dupond Construtora pegou parte dessa obra também.
-
Acho que eles vão entra com o suporte...
Pedro
observou de longe aquela conversa, mas pouco sabia do que aquelas pessoas
falavam. Encima do horário o ônibus contratado pela empresa chegou, havia uma
grande faixa “ Klan Engenharia”. Um rapaz perguntou bem alto:
-
Todo mundo aí sabendo do salário e com as carteiras nas mãos?
Todos
deram sinal de positivo, Carine fez uma última tentativa:
-
Pedro não vá, por favor.
-
Tchau, vou vencer lá em São Paulo. Vou voltar com dinheiro, será por pouco
tempo.
Quando
Pedro estava entrando no ônibus, Tiago que já tinha quase dois anos, pronunciou
doces palavras:
-
Papai...dimbora não papai...dimbora não papai.
Os
olhos de Pedro se encheram de lágrimas, mas ele reprimiu o choro e entrou no
ônibus. Estava um pouco cabisbaixo. Então um homem puxou conversa com ele:
-
Primeira vez que cai no trecho?
-É.
-
Ra Ra Ra, depois você acostuma.
Dentro
do ônibus todos conversavam a respeito de toneladas, firmas, estrutura,
Gerentes. Pedro observa a Vila que tinha sido criado, agora ele estava indo
para bem longe. Carine ficou apavorada com as duas crianças na rodoviária. O
choro de Tiago era estrondoso, Gabriela nada entendia... e para longe Pedro
viajava.
CAPITULO 8
São Paulo
A
viagem foi muito cansativa, ela durou três dias e muitas vezes o ônibus
demorava de chegar nos pontos de alimentação cadastrados pela empresa. Antes de
chegar a Cubatão foi necessário passar por São Paulo capital, aquilo foi um
novo mundo para Pedro, estava assustado e vislumbrado ao mesmo tempo. Aquele
transito, prédios, avenidas eram completamente diferente do que Pedro realmente
esperava. Sentia-se acuado, um pouco amedrontado, pararam para fazer um lanche
em um posto de Gasolina, o sotaque das pessoas era bem diferente, ele não
encontrou o perfil acolhedor das pessoas com o qual estava acostumado em
Cachoeira. Pouco depois o ônibus seguiu para Cubatão, chegando lá a vista era
horrível, chegou a ser agressivo para a Natureza de Pedro. Ele notou que os demais
poucos de importavam, concentrados estavam no escopo da Obra:
-
Daquela torre até aquele tanque será o primeiro Pipe-Way. Só serão 35 Toneladas
de suportes.
O
ônibus parou em frente a um prédio velho que tinha a vista para outro prédio
velho. Então o administrativo indicou que todos descessem do ônibus e lhes
entregasse as carteiras de trabalho. Na espera havia outro administrativo
responsável pelos alojamentos, como sotaque de São Paulo ele falou:
-
Como foram de viagem?
-
Muito bem, demoramos três dias.
-
Aqui o alojamento são oito por quarto. Acabei de comprar lençol e toalha. O
restaurante é ali em frente. Vieram quantos nesse ônibus?
-
37 Pessoas.
-
Tem vaga para todo mundo. É só mandar eles irem para o terceiro andar e lá vão
encontrar as camas prontas e as chaves dos armários.
-
Onde é que tem um lugar para tomar uma gelada, não aguento mais ficar na água.
-
Boteco com gelada aqui é o que não falta.
Pedro
pouco tinha conversado e se enturmado no ônibus. Subiu até o terceiro andar e
escolheu uma cama. Quando sentou na cama pensou em voltar. Olhou a sua volta,
todos estavam animados com a chegada:
-
Vamos fazer os exames só amanhã. Hoje é dia de procurar lugar para tomar uma
bem gelada.
Ulisses
teve a preocupação de procurar Pedro e perguntar como ele estava:
-
Como tá garoto? Gostou?
Pedro
assustado respondeu:
-
Mais ou menos, não era isso que eu tava esperando.
Então
Ulisses que sabia que não poderia aliviar, respondeu:
-
Pedro, aqui tu tá para ganhar dinheiro. Mas tem que me ajudar no serviço.
Pedro
sentiu uma confiança muito grande nas palavras de Ulisses, diferente de Otamar
ele inspirava o verdadeiro respeito e compromissos com as obrigações que ali
tinham de ser feitas.
-
Eu tenho um filho da tua idade, sabia? Os administrativo vão cuidar de tudo. Se
tiver algum problema pode me procurar, Pião da minha equipe não passa aperreio.
Ele
se sentiu mais confortável com a presença de Ulisses, então a noite comeu um
bom prato de comida, ligou para o orelhão de sua rua para falar com Carine,
chorou de saudades e dormiu.
CAPITULO 9
XXXXXXXXXXXXX
No
dia seguinte todos fizeram os exames e depois já assinaram as carteiras de
trabalho. Aquelas torres, aqueles grande tanques, aquelas pessoas andando de um
lado para outro... esse mundo industrial deixava Pedro impressionado. Aos
poucos ele foi se enturmando e entrando no espírito do trabalho do time de
Ulisses. A sua equipe foi formada com as pessoas do próprio quarto. Nobrega era
o encanador líder da equipe, este já estava a 16 anos no trecho e bebia todos
os dias. Jackson era o lixador, era evangélico estava no trecho a 12 anos,
passava as noites rezando e seu objetivo era ganhar dinheiro no trecho e depois
sair. Jarbas era o soldador, estava no trecho a seis anos e sempre que podia
saia para paquerar garotas. Haviam mais três ajudantes: Junior, Sales e
Pablo... estes como Pedro estavam em sua primeira empreitada e passavam por
sensações parecidas. Ulisses passava todos os dias no quarto para contar as
novidades do empreendimento: Os equipamentos que chegavam, local onde eles
trabalhariam, e sempre trazia umas cervejinhas para ficar conversando com o
pessoal. O seu maior objetivo com esta ação era unir e equipe e fazer com todos
se sentissem integrados ao seu grupo. A entrada dos trabalhadores na obra era
impressionante, todos os dias entravam 2000 mil homens na obra. Então o
trabalho árduo foi começando, havia que carregar tubos metálicos pesados,
carregar os equipamentos de solda, deixar a área limpa, aos poucos aquele
ambiente industrial foi se tornando Familiar para Pedro, em compensação ele
começou a entrar no embalo de tomar uma cervejinha todos os dias, ela
aparentemente aliviava a saudade de casa e o desligava do dia estressante. Todos
os dias ele ligava para Carine para saber dela e dos filhos, e lhe dizia que o
fim do mês estava chegando, que ele mesmo iria ao banco depositar o dinheiro,
que não iria faltar nada em casa. Carine apenas lhe dizia:
-
Pedro o Tiago está morrendo de saudade, volta logo. Você paga essas dívidas e
volta para casa.
Ele
escutava mas estava se contagiando aos poucos com a cultura de estar fora de
casa, ele foi aos poucos enraizando a pegada das obras de montagem, onde muito
se bebe, se trabalha, se diverte, se brinca, se fofoca, etc. A vida do trecho
apesar dos sacrifícios tem diversos encantos. O trabalhador de campo tem uma
maneira boa de encarar o ambiente de trabalho, quando ele está satisfeito,
brinca muito, coloca apelidos dos mais engraçados... namoram as meninas que o
momento oferece. Nesse mundo Pedro foi mergulhando, ali foi ganhando dinheiro,
o casamento foi esfriando, as idas a casa eram de três em três meses. Carine
queria que aquela solidão acabasse logo, ela não procurava pensar o que Pedro
poderia estar fazendo.
Perto
das obras sempre se formam bares que são frequentados em sua maioria pelas
pessoas da obra. No caso de Cubatão existia um sambinha todos os dias, e nesses
bares as mulheres sedentas por wisk não demoram de aparecer. Pedro começou indo
um dia por semana, depois dois, depois três... sempre que podia namorava as
meninas, começou a ficar viciado em horas extras para ganhar mais dinheiro,
pois as farras eram caras, mesmo assim em casa nada faltava. Um ano se passou,
Pedro tinha ido apenas três vezes em casa e ele já era membro permanente e
competente da equipe de Ulisses. E já conversava em quantas toneladas sua
equipe iria montar naquele mês. Já Carine, agradecia a Deus por não estar
passando fome, pois nada faltava em casa, mas queria Pedro pertinho dela dando
atenção a sua família, pois as dúvidas já estavam pagas e Carine não entendia
porque ele não voltava para casa.
CAPITULO 10
A vida no trecho
Pedro
se firmou e ganhou a confiança de Ulisses no trabalho, dois anos se passaram e
aquele ambiente que ele tanta estranhara um dia já lhe era comum. Sua vida era
se divertir, trabalhar, beber a noite, procurar mulheres, conversar
excessivamente de obras, ligar para a família e comprar presentes para os
filhos e para a mulher. Certa sexta-feira os comentários começaram cedo:
-
Hoje vai ter cover de raça negra.
-
Vai ter só as melhores papai.
Toda
a obra estava empolgada com um show de um cover de raça negra que ia acontecer,
os ingressos já estavam comprados e era dia de ligar cedinho para Carine:
-
Ligo logo cedo para a mulhé, depois que ela dormi eu me mando pros show.
E
assim foi naquele dia, naquela sexta-feira Pedro como de costume ligou para o
orelhão e eles falaram o básico rapidamente. A vida de Carine se tornara
entediante, era uma espécie de infelicidade interna e vergonha inexplicável
para as pessoas, pois estar naquela fase da vida com o marido tão ausente de
casa era frustante. Ela não conseguia disfarçar dos filhos certo rancor por
aquela solidão. Pedro foi para a farra e ela foi para a casa. Logo que desligou
o telefone Tiago começou a vomitar, já Pedro começou a beber, depois Tiago
piorou, Pedro também piorou, Carine procurou uma carona para o hospital que de
pronto não encontrou, Pedro pegou um taxi com os amigos e na porta do show ele
ficou, Tiago chorava cada vez mais forte, Pedro falava cada vez mais alto.
Carine
no desespero pediu a ajuda de Jeremias de que de pronto colocou ela, Tiago e
Gabriela na moto rumo ao hospital. Chegando lá ele se desculpou e disse que não
poderia ficar, mas que ia deixar a moto com Israel para que ficasse de plantão
e assim ocorreu. Gabriela chorava muito, pois a neném queria estar em casa, a
mãe não conseguia acalmar ela, foi quando Israel a pegou pelo colo e a neném
sorriu, com sua pelezinha moreninha e seus pequenos caixos negros. Para sempre
uma relação paterna entre Gabriela e Israel estava formada. A noite passou
devagar, os médicos deram vários soros para Tiago, o neném ficou sobre
observação até o amanhecer. Israel ficou do lado de fora do hospital brincando com
Gabriela e Carine sem dormir na sala de espera.
Pedro
entupido de bebida estava em estado de estase, cantando todas as músicas de raça
negra, abraçado com os amigos, mexendo com as mulheres e bebendo cada vez mais.
Em pouco tempo arranjou uma namorada no show e entre amigos eles brincavam:
-
De fudé demais papai. Eu quero é mais, eu quero é mais....
A
noite passou e o dia amanheceu. Carine chegou em casa com as duas crianças no
colo, agradeceu a Israel e ficou sozinha por horas olhando o rio. Queria
explodir, quebrar a casa, bater nas crianças mas só lhe restou chorar. Chorou
por três horas seguidas e se lamentou, se perguntou mas não encontrava
respostas.
Pedro
acordou de ressaca no final da tarde de sábado, a primeira coisa que fez com os
amigos foi resenhar:
-
A menina mora aqui perto, na semana vou lá dormir com ela.
Até
que de tardinha chegou a hora de ligar para casa, ele escutou em tom
desesperado:
-
Pedro passei a noite no hospital com o Tiago, ele ficou muito doente. E você
longe. Para com isso, volta logo. Quem ficou lá com a gente foi seu primo
Israel.
Ele
respondeu em tom confuso:
-
O Tiago tá doente? Diz para ele que vou comprar o caminhão mais bunitu daqui.
Vou levar presente para você também. Ele já está bem?
Pedro
tentava compensar a ausência de casa com presentes. De alguns amigos de
trabalho ele escutou:
-
Rapaz, mulher é assim mesmo. Tenta de todo jeito chantagear o pião. Garoto,
garoto vá se acostumando com essas coisas.
De
um lado ficou Carine na solidão, e do outro Pedro confuso, mas tomado de conta
por aquele ambiente de obras. A segunda-feira chegou e já haviam pré-fabricados
para montar.
CAPITULO 11
O passar dos anos
Mal
Pedro concluiu sua primeira obra em Cubatão e já havia outra para ir no
interior do Pará, e depois em Minas Gerais e foi também ao Rio Janeiro e ao
Brasil ele passou e pertencer. Carine suportou esperançosa que Pedro desistisse
daquela vida por dois anos, depois desse tempo ela não se separou, mas também
passou a ter uma vida paralela. Continuou uma mulata bonita e atraente, sempre
que podia deixava as crianças com a mãe e inventava uma desculpa para ir a
Salvador passear, fazer cursos, etc. E ali ela se interessava por outros
rapazes assim como Pedro se interessava por outras garotas. O casamento passou
a ser praticamente uma fachada, o único motivo que unia os dois e os mobilizava
de verdade era quando ocorria algum problema com os filhos. Gabriela cresceu e
se tornou uma menina desobediente, a verdade é que Carine não podia com ela, a
menina sentia uma espécie de raiva e amor a todos os homens, talvez o preço de
uma referência masculina ausente de sua vida. O único que ela respeitava de
verdade era Israel, primo de Pedro, quando este lhe dava broncas ela se
comportava e lhe escutava, ele tinha um carinho muito especial pela sobrinha. O
respeito que ela tinha por Pedro era confuso, ela sabia que aquele homem lhe
originara a vida, mas sua intuição feminina desde pequeninha entendia e
processava tudo, o vazio que o pai deixava em casa e solidão da mãe, lhe
remetia a um ódio inconsciente do pai... uma mistura de amor e ódio que mais
tarde iria refletir nos seus relacionamentos com os homens. Já Tiago de certa
forma achava o máximo a luta do pai, talvez os primeiros nos de sua vida em que
Pedro passeava com ele na beira do rio, lhe permitiu um respeito e um vínculo
eterno com o pai. Ele foi crescendo e onde estivesse procurava falar com Pedro
todos os dias.
As
vezes que Pedro ia para casa praticamente só falava em toneladas de tubulação a
serem montadas. Tirava um tempinho sim para falar com Carine e saber dos
filhos. Por um lado ele sentia um orgulho imenso, pois não faltava nada em casa
e os dois filhos eram bons alunos na escola.
Quinze anos se passaram, em 2007 Pedro
já era encarregado de Solda e no trabalho seguia o exemplo de Ulisses. Carine
era dona de um salão de beleza. Tiago cursava o terceiro ano em Salvador e
Gabriela ainda estudava em Cachoeira.
14
de Dezembro de 2007, Aeroporto de Salvador
Lá
estava Pedro rumo a Coari interior do amazonas, ali seriam construídas duas
estações de compreensão para aumentar o abastecimento de Gás em Manaus.
-
Pedro, você sabe quantas toneladas de tubulação serão montadas?
-
400 toneladas de aço carbono mais 250 de inox.
-
Como é que está a distribuição de firmas nesse consorcio?
-
A TDK é a dona da obra e a Ticna Engenharia está com o projeto, a parte de
civil é da Proenegem Engenharia.
-
Muito bom....
Já
esperava o horário do avião como se aquilo fosse pegar um ônibus. Então o
celular tocou:
-
èe passou... passou... tá na lista....
-
Como? – disse Pedro- Não entendi.
-
Passou... O Tiago passou para Engenharia Civil nas cotas, sou eu Carine. O
Jeremias tá reservando o boi e o churrasco.
Naquele
momento Pedro como de costume pensou em suprir sua ausência dizendo que ia
transferir o dinheiro da festa para Jeremias, o dinheiro pela presença, como
tinha feito nos últimos 15 anos. Mas Tiago pegou o telefone:
-
Pai, passei, passei... valeu a pena, todo o sofrimento que passei em Salvador
sem dinheiro, obrigado por ter sido meu amigo todos esses anos. Mesmo estando
longe, você é meu melhor amigo. Vem para cá!.
Naquele
momento as ideias de Pedro tornaram-se confusas, frases como “meu filho
Engenheiro Civil” eram disparadas o tempo todo pelo seu inconsciente. As
injustiças que ele passara na vida todos aqueles anos trabalhando no trecho. A
quantidade de engenheiros mau educados que já suportara para permanecer no
emprego. E agora seu filho. Era tudo bem confuso, aqueles anos todos ele
trabalhará por um propósito, o futuro dos seus filhos. Lembrou-se de Gabriela e
Tiago, e sentiu muito orgulho de uma luta, um sacrifício... pois ele
sacrificará a sua vida e a de Carine pelos filhos e este era a primeira vez na
vida que tomava consciência disso. Estava emocionado, seu filho ia cursar
engenharia civil... uma grande festa estava para acontecer e ele não ia poder
comparecer. Então um de seus amigos que acabara de chegar ao aeroporto lhe
perguntou:
-
Quem é a gerencia dessa obra?
-
Ponto final- foi o que Pedro respondeu.
Pegou
o celular e ligou para seu superior. Ainda não estava com a carteira assinada:
-
Não vou, tenho que resolver uns problemas.
-
Só esse embarque.
-
Não vou, tenho que resolver uns problemas.
Pegou
o celular e ligou para Gabriela:
-
Filha, se prepara que eu to chegando aí de surpresa.
Pegou
um ônibus até a rodoviária e partiu para cachoeira. No caminho ia olhando para
a BR-101 e começou a sentir saudades de sua infância. Só queria chegar em casa
e fazer a surpresa que Carine e seus filhos sonharam por tantos anos, aquele
era o dia do ponto final. Quando chegou em cachoeira, lá estavam todos no mesmo
campo de futebol de anos atrás. Quando ele chegou a alegria de todos era
evidente, o dia era de festa. Seu filho jogava em campo e o churrasco não
parava de sair. Carine estava um pouco estressada, ela se preocupava com tudo .
Pedro olhou tudo aquilo, o rio, a mulher, os filhos... ele tinha um coração
bom, ainda estava em tempo de conquistar todo mundo, principalmente
reconquistar Carine. Se aproximou dela e depois de muitos anos tornou a ser
carinhoso com ela:
-
Parabéns pela mãe que você é, estou muito orgulhoso de você.
Pedro
ainda não sabia como ia ganhar dinheiro, mas era ciente de que ia vencer, seu
conhecimento de solda era avançado, isso lhe permitiria arrumar empregos por
ali, não tão bem remunerados, mas perto de casa. Queria dizer algo ao filho,
como um pai bobo que quer ajudar, mas a única coisa que sabia da faculdade de
engenharia era que as matemáticas eram bem puxadas. O sol foi se pondo, ele
queria se reaproximar da filha, puxava conversa, Gabriela naquela dia mais que
ninguém estava muito orgulhoso do pai. O chefe da obra de Coari tornou a lhe
ligar para aumentar a proposta do salário. Mas Pedro nem atendeu. Aquele foi o
dia do ponto final.
FIM
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