terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Burrocracia: Oscar e Katia



Oscar é um senhor de 76 anos que leva uma vida bem apertada; ganha uma aposentadoria de 890 reais por mês que é fulminada pelos remédios e pelas necessidades básicas. Seus filhos ajudam um pouco, apesar de também estarem sempre apertados. A esposa de Oscar,  Dona Helenice faz salgados todos os dias e arma uma banca na entrada de sua humilde casa e os vende para a garotada. Oscar,  que fora porteiro do mesmo prédio por 40 anos , também ajuda a esposa e adora prosear com outros senhores de sua idade sobre diversos assuntos, de futebol a política. Todo dia 10 é reservado para ir ao banco retirar sua aposentadoria,  na boca do caixa. Como vive em um bairro um pouco afastado,  tem de pegar um ônibus bem cedinho para efetuar essa atividade. Um belo mês ele escuta da caixa do banco:
- Senhor,  me desculpe, mas não há saldo para esse saque; ainda procurou , mas nada encontrou que explicasse o fato. A mesma caixa de todos os meses não sabia o que havia acontecido, queria ajudar, mas também não tinha as respostas, apenas a péssima noticia. Por fim ela se pronunciou:
- O senhor, terá de se deslocar até o INSS e averiguar o que aconteceu.
Oscar ficou sem chão, precisava do seu dinheirinho para resolver seus problemas, principalmente comprar seus remédios. Respirou fundo, tomou coragem e pegou um ônibus até o INSS. Lá retirou uma senha prioridade para ser atendido e mesmo assim tardou duas horas para chegar ao guichê de Amélia. Esta merece um pouco mais de atenção, tem 42 anos e aos 17 sonhava em ser pianista, fizera aulas desde criança quando tinha as mãos leves e espontâneas. Fez Faculdade de Pedagogia, mas não encontrou de imediato um bom emprego. Quando passou para o concurso do INSS,  uma grande festa foi feita em sua casa há 16 anos. Estava garantida na vida, agora os dedos que sonhavam em tocar para uma plateia, iriam conferir e formalizar protocolos. Amélia fez um contrato psicológico com seu trabalho, pois dele havia garantia de uma posição na sociedade e sustento para seus filhos. Mas a alma castigava e inconscientemente cobrava todos os dias seus sonhos;  sua alma espancava seu corpo, mas ela não percebia isso, pois esse processo era inconsciente. Essa foi a primeira atendente de seu Oscar, um pouco mal humorada:
- O que o senhor deseja?
- Saber por que a minha aposentadoria não caiu.
- Documentos, por favor.
Ele os entrega, ela precisou de um tempo para avaliar, e lhe respondeu:
- Todo seu processo foi cancelado, não sei por quê. Sumiu do sistema. Terei que fazer um novo processo para liberar seu dinheiro. Terá que trazer cópia da sua Certidão de nascimento, CPF, RG, comprovante de residência, PIS/PASEP, carteira de trabalho e por fim terá sua aposentadoria de volta.
- Mas como senhora? Tem ideia do que está me fazendo. Que castigo está me dando? Tem anos que não sei o que são esses documentos.
- Sinto muito senhor, entendo que é complicado, mas é o processo.
- Mas eu entreguei cópia disso tudo há 10 anos.
- O processo de 10 anos atrás não é mais válido, terá de trazer tudo que lhe indiquei. Expressou Amélia com um tom já resmungão.
Oscar anotou todos os documentos e no dia seguinte os recolheu e retornou ao INSS. Chegando lá se encontrou com Hugo. Acabara de entrar para o serviço público, tinha um bom penteado, sempre se vestia bem e era bem humorado. O churrasco de comemoração pelo concurso ainda estava presente, consequentemente o compromisso com o trabalho e com o processo também. Seu Oscar escutou de Hugo em um tom respeitoso e educado:
- Desculpe senhor, mas o comprovante de residência tem que ser no seu nome. Terá que protocolar firma em cartório afirmando que reside nesse endereço.
- Mas eu moro aqui.
Hugo puxou uma folha impressa do site e lhe informou:
- Veja senhor, está na internet. Terá que reconhecer sua firma em cartório – Hugo era educado, responsável e respeitoso em seu tom de voz.
Oscar não podia acreditar no que estava escutando. Não sabia se desmaiava, gritava ou batia no garoto. Mas respirou fundo, manteve a calma, tomou o ônibus e foi até o cartório. Lá durante toda a tarde fez todo o processo, reconheceu firma e informou formalmente com assinatura de tabelião que residia no endereço que estava em nome de sua esposa. Mas só teve tempo de retornar ao INSS no dia seguinte, quando por fim se bateu com Katia:
- Senhor, desculpe-me, mas nunca vi processo parecido. Vou consultar meu chefe, sinto muito, mas é o meu primeiro mês.
O chefe de Katia, Amélia e Hugo chama-se Rodrigo. Este também merece um pouco de atenção. Formou-se novo em administração e a verdade é que sempre esteve um pouco indeciso no que ia fazer da vida. Sua família, patriarcal,  pressionava muito para que ele tivesse uma posição na sociedade e por isso sofreu várias crises antes de chegar aos trinta. Em suas profundezas existem respostas ocultas que nem ele mesmo sabe. Está há 11 anos no serviço público. Tem um semblante razoavelmente descuidado. É barrigudo, pratica pouco esporte e gosta de tomar um shop todos os dias. É a única pessoa que pode aprovar processos fora de procedimento; seu terno e carimbo são notáveis. Aquele fluxo de papeis, aquela sala gelada, aquele prédio repetitivo, aqueles mesmos processos todos os dias. Assim era a sua vida. Então Katia lhe explicou a tragédia que estava acontecendo com Oscar e ele começou a filosofar... As angustias de sua alma indecisa e frustrada foram camufladas por um burocrata que demonstrava conhecer bem as regras do INSS. Gesticulava com muita propriedade, se expressava com as mãos e com o corpo, Katia rapidamente se perdeu em suas explicações. As vezes ele dizia:
- Percebeu a gravidade do processo?...O Ministério do trabalho....Por isso a importância do trabalho.
Katia lembra que Oscar a estava esperando e começou a ficar ansiosa. Por fim Rodrigo conclui:
- Katia querida, isso não é problema do INSS. Mas sim do ministério do trabalho. O protocolo inicial é feito lá. Só depois ele deve retornar aqui – ao dizer protocolo simulou na mão esquerda um papel e com direita simulou uma mão escrevendo.
Ela ficou um pouco confusa e foi  passar a informação a Oscar:
- Senhor, terá de ir até o ministério do trabalho. Aqui é apenas para dar entrada, e não para corrigir processos. É preciso declarar novamente e formalmente seu tempo de trabalho. Desculpe, mas são palavras do meu chefe, queria ajudar, mas não posso.
Nesse momento os olhos do senhor Oscar ficaram profundos, angustiados, desesperados... Mas respeitosos ,daí ele começou a falar em tom baixo, como se uma tempestade estivesse prestes a acontecer:
- Menina, tenho 76 anos. Há três dias rodo para tentar tirar minha aposentadoria, dinheiro com o qual compro minha comida e meus remédios. Trabalho desde os 14 e é direito meu. Aqui faz muito calor, gosto do ficar em casa tomando vento na varanda com a minha esposa. Pelo amor de Deus, olhe para mim e diga que está brincando. Que está tudo bem. Que posso ir ao banco retirar meu dinheiro.
Seu Oscar foi humilde e delicado nas palavras. Katia era uma menina nova e cheia de sonhos, seu coração derreteu. Ainda não tínhamos falado dela, vem de uma família fantástica, sempre fora respeitadora e dessas que gosta de chamar senhores de fofos, e abraça todo e qualquer senhor naturalmente ; é apaixonada pelo seu avô. Como uma menina de poucas oportunidades, viu no serviço público uma solução para trabalhar e ajudar sua família e tem apenas 22 anos. Foi verificar no sistema e percebeu que para resolver o problema do senhor ela precisava apenas preencher o CPF, RG, PIS/PASESP, CEP e havia um espaço a ser preenchido que era o endereço da pessoa. O restante era arquivado e levado para sala de arquivos, como uma maneira formal de registrar o processo. Ela foi até a sala de arquivamento e lá verificou vários papeis fora de ordem. Documentos que nunca ninguém iria checar, um caminhão aparecia às vezes para retirar os documentos e a algum lugar eles eram levados. Lugar seguro, sim, pois o processo precisava ser respeitado, mas ela entendeu tudo e retornou e ao guichê de atendimento:
- Senhor espere um minuto.
Pegou seus documentos, os arquivou e com sua senha liberou o dinheiro de Oscar. Tinha certeza de que na verdade estava sendo responsável, sem nenhum peso na consciência se pronunciou:
- Pronto senhor, pode ir ao banco. Lá você entrega esse papel aqui.
Oscar se foi e Katia ficou. Ela observava todos os dias pessoas que não sabiam consultar sites e que demoravam em torno de uma semana para reunir todos os documentos formais do processo. Via senhores como Oscar serem encaminhados a cartórios e outros órgãos, toda aquela quantidade de papel era arquivada e levada de lá, nunca ninguém consultava e abria aquelas pastas. Ela se perguntava: com tanta tecnologia porque todo esse processo é necessário? Queria abrir um pouco os olhos de seu chefe, para facilitar um pouco mais as coisas, mas ele sempre focava no processo, e adorava todo e qualquer tipo de protocolo. Ela percebeu que quanto mais apagada alma de Rodrigo,  maior notoriedade o processo tomava, às vezes ele até dizia:
- Por isso eu e outros amigos estamos batalhando para corrigir esse processo e incluir novo protocolo – como sempre ao dizer protocolo simulava uma mão escrevendo na outra.
O coração de Katia todos os dias ficava um pouco mais triste e sempre que podia, o processo era burlado. 
Escrito por Daniel Vidigal
Foto: http://notasverbais.blogspot.com.br/2012/02/secretario-total-do-mne.html

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Baía de todos, todos os Santos


Foto 1: Desconhecido (se alguém conhecer o fotografo fico agradecido)

O dia amanhece na Baía de todos os Santos, um dos maiores presentes que a natureza deu a cidade de Salvador. O sol aos poucos invade a água provocando um leve brilho, evento que privilegia a todos que tem essa vista. Sandro e Lucia apreciam esse  espetáculo todos os dias, vivem ao lado da Igreja da Conceição e uma pequena escada dá acesso ao apartamento. Trata-se de um prédio que tem pouco mais de cem anos, foi provavelmente a casa de alguém muito rico a um centenário atrás. Os quartos em sua maioria são ocupados por prostitutas que trabalham na avenida sete ou atendendo marinheiros que descansam no porto. O quarto tem um leve cheiro de mofo, por mais que ele seja limpo o cheiro ficou impregnado. O colchão é defeituoso como um todo, mas ha pouco tempo para reclamar e se queixar dessas coisas, até mesmo porque a infância de ambos fora muito pior. Ele fugiu de casa aos 15 anos porque era espancado pelo padrasto. Já ela foi abandonada quando criança, nunca se interessou pelo emprego de prostituta, chegou a fase adulta pedindo esmola nos semáforos e na adolescência aprendeu a lavar roupas, profissão que lhe permite um lugar digno e não perturbador na sociedade até hoje. Sandro por sorte tem seu próprio negocio, ele é flanelinha, o mesmo alugou um ponto bem movimentado onde se guardam muitos carros. Ao contrário da maioria dos seus colegas de profissão ele é conquistador e encanta a todos os clientes, nasceu para ser popular.  Seu ponto é muito disputado, mas não vale a pena entrar nesses detalhes, o “dono” da rua só lhe fornece o local porque sabe de seu potencial. O dia vai passando para Sandro, o mesmo sol que brilha e encanta de manhã cedinho, agora torra. Haja energia, a água é escassa, alguns não querem pagar, outros pedem uma lavagem... O dia vai passando para Lucia também, as roupas não param de chegar, tudo é lavado na mão em um beco que faz um calor insuportável, o ar simplesmente não circula. O coração pulsa, as mãos respondem e ambos desempenham seu papel na sociedade... A ninguém eles incomodam, as vezes parecem que nem existem. No mesmo compasso das batidas do coração a noite chega. Com o dinheiro arrecadado a quantia do aluguel da rua é separada, grave encrenca se o mesmo não for pago. O dinheiro da noite dá para uns pãezinhos com presunto, as vezes até para um leitinho. A Baía de todos os Santos no horário da noite é linda, a lua sempre está presente, de mãos dadas eles apreciam a noite. Tudo o que eles têm na vida é um ao outro, eles não querem incomodar, apenas trabalhar, apenas viver. Lucia na hora de dormir pensa em ser mãe, mas olha a sua volta e reprime o sentimento. Sandro pensa em ser pai, mas quando olha pela janela, observa meninos de rua fumando craque e se pergunta: Com quem meu filho iria brincar? Uma leve lagrima lhe escorre no rosto, com o dedo um pouco sujo ele a limpa. O sono toma conta, eles dormem, descansam, deverão estar prontos para mais um dia.
Escrito por: Daniel Vidigal


Foto 2: Desconhecido(se alguém conhecer o fotografo agradeço a  ajuda). 

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Flechas Binárias



Palavras,
São como flechas lançadas ao vento,
Mas nesses tempos,
Em forma de zeros e uns,
Elas viajam,
Do coração,
Para a mente,
Então vem o teclado,
Depois a fibra ótica,
Os bits voam,
O coração deseja,
Que cada texto,
Cada palavra,
Ao seu destino,
Chegue,



Poema: Daniel Vidigal
Foto: http://www.canstockphoto.com.br