Oscar é um senhor de 76 anos que
leva uma vida bem apertada; ganha uma aposentadoria de 890 reais por mês que é
fulminada pelos remédios e pelas necessidades básicas. Seus filhos ajudam um
pouco, apesar de também estarem sempre apertados. A esposa de Oscar, Dona Helenice faz salgados todos os dias e
arma uma banca na entrada de sua humilde casa e os vende para a garotada. Oscar,
que fora porteiro do mesmo prédio por 40
anos , também ajuda a esposa e adora prosear com outros senhores de sua idade sobre
diversos assuntos, de futebol a política. Todo dia 10 é reservado para ir ao
banco retirar sua aposentadoria, na boca
do caixa. Como vive em um bairro um pouco afastado, tem de pegar um ônibus bem cedinho para
efetuar essa atividade. Um belo mês ele escuta da caixa do banco:
- Senhor, me desculpe, mas não há saldo para esse saque;
ainda procurou , mas nada encontrou que explicasse o fato. A mesma caixa de
todos os meses não sabia o que havia acontecido, queria ajudar, mas também não
tinha as respostas, apenas a péssima noticia. Por fim ela se pronunciou:
- O senhor, terá de se deslocar
até o INSS e averiguar o que aconteceu.
Oscar ficou sem chão, precisava
do seu dinheirinho para resolver seus problemas, principalmente comprar seus
remédios. Respirou fundo, tomou coragem e pegou um ônibus até o INSS. Lá
retirou uma senha prioridade para ser atendido e mesmo assim tardou duas horas
para chegar ao guichê de Amélia. Esta merece um pouco mais de atenção, tem 42
anos e aos 17 sonhava em ser pianista, fizera aulas desde criança quando tinha
as mãos leves e espontâneas. Fez Faculdade de Pedagogia, mas não encontrou de
imediato um bom emprego. Quando passou para o concurso do INSS, uma grande festa foi feita em sua casa há 16
anos. Estava garantida na vida, agora os dedos que sonhavam em tocar para uma
plateia, iriam conferir e formalizar protocolos. Amélia fez um contrato
psicológico com seu trabalho, pois dele havia garantia de uma posição na
sociedade e sustento para seus filhos. Mas a alma castigava e inconscientemente
cobrava todos os dias seus sonhos; sua
alma espancava seu corpo, mas ela não percebia isso, pois esse processo era
inconsciente. Essa foi a primeira atendente de seu Oscar, um pouco mal
humorada:
- O que o senhor deseja?
- Saber por que a minha
aposentadoria não caiu.
- Documentos, por favor.
Ele os entrega, ela precisou de
um tempo para avaliar, e lhe respondeu:
- Todo seu processo foi cancelado,
não sei por quê. Sumiu do sistema. Terei que fazer um novo processo para
liberar seu dinheiro. Terá que trazer cópia da sua Certidão de nascimento, CPF,
RG, comprovante de residência, PIS/PASEP, carteira de trabalho e por fim terá
sua aposentadoria de volta.
- Mas como senhora? Tem ideia do
que está me fazendo. Que castigo está me dando? Tem anos que não sei o que são
esses documentos.
- Sinto muito senhor, entendo que
é complicado, mas é o processo.
- Mas eu entreguei cópia disso
tudo há 10 anos.
- O processo de 10 anos atrás não
é mais válido, terá de trazer tudo que lhe indiquei. Expressou Amélia com um
tom já resmungão.
Oscar anotou todos os documentos
e no dia seguinte os recolheu e retornou ao INSS. Chegando lá se encontrou com
Hugo. Acabara de entrar para o serviço público, tinha um bom penteado, sempre
se vestia bem e era bem humorado. O churrasco de comemoração pelo concurso
ainda estava presente, consequentemente o compromisso com o trabalho e com o
processo também. Seu Oscar escutou de Hugo em um tom respeitoso e educado:
- Desculpe senhor, mas o
comprovante de residência tem que ser no seu nome. Terá que protocolar firma em
cartório afirmando que reside nesse endereço.
- Mas eu moro aqui.
Hugo puxou uma folha impressa do
site e lhe informou:
- Veja senhor, está na internet.
Terá que reconhecer sua firma em cartório – Hugo era educado, responsável e
respeitoso em seu tom de voz.
Oscar não podia acreditar no que
estava escutando. Não sabia se desmaiava, gritava ou batia no garoto. Mas
respirou fundo, manteve a calma, tomou o ônibus e foi até o cartório. Lá
durante toda a tarde fez todo o processo, reconheceu firma e informou
formalmente com assinatura de tabelião que residia no endereço que estava em
nome de sua esposa. Mas só teve tempo de retornar ao INSS no dia seguinte,
quando por fim se bateu com Katia:
- Senhor, desculpe-me, mas nunca
vi processo parecido. Vou consultar meu chefe, sinto muito, mas é o meu
primeiro mês.
O chefe de Katia, Amélia e Hugo
chama-se Rodrigo. Este também merece um pouco de atenção. Formou-se novo em
administração e a verdade é que sempre esteve um pouco indeciso no que ia fazer
da vida. Sua família, patriarcal, pressionava muito para que ele tivesse uma
posição na sociedade e por isso sofreu várias crises antes de chegar aos
trinta. Em suas profundezas existem respostas ocultas que nem ele mesmo sabe.
Está há 11 anos no serviço público. Tem um semblante razoavelmente descuidado.
É barrigudo, pratica pouco esporte e gosta de tomar um shop todos os dias. É a
única pessoa que pode aprovar processos fora de procedimento; seu terno e
carimbo são notáveis. Aquele fluxo de papeis, aquela sala gelada, aquele prédio
repetitivo, aqueles mesmos processos todos os dias. Assim era a sua vida. Então
Katia lhe explicou a tragédia que estava acontecendo com Oscar e ele começou a
filosofar... As angustias de sua alma indecisa e frustrada foram camufladas por
um burocrata que demonstrava conhecer bem as regras do INSS. Gesticulava com
muita propriedade, se expressava com as mãos e com o corpo, Katia rapidamente
se perdeu em suas explicações. As vezes ele dizia:
- Percebeu a gravidade do
processo?...O Ministério do trabalho....Por isso a importância do trabalho.
Katia lembra que Oscar a estava
esperando e começou a ficar ansiosa. Por fim Rodrigo conclui:
- Katia querida, isso não é
problema do INSS. Mas sim do ministério do trabalho. O protocolo inicial é
feito lá. Só depois ele deve retornar aqui – ao dizer protocolo simulou na mão
esquerda um papel e com direita simulou uma mão escrevendo.
Ela ficou um pouco confusa e foi passar a informação a Oscar:
- Senhor, terá de ir até o
ministério do trabalho. Aqui é apenas para dar entrada, e não para corrigir
processos. É preciso declarar novamente e formalmente seu tempo de trabalho.
Desculpe, mas são palavras do meu chefe, queria ajudar, mas não posso.
Nesse momento os olhos do senhor
Oscar ficaram profundos, angustiados, desesperados... Mas respeitosos ,daí ele
começou a falar em tom baixo, como se uma tempestade estivesse prestes a
acontecer:
- Menina, tenho 76 anos. Há três
dias rodo para tentar tirar minha aposentadoria, dinheiro com o qual compro
minha comida e meus remédios. Trabalho desde os 14 e é direito meu. Aqui faz
muito calor, gosto do ficar em casa tomando vento na varanda com a minha
esposa. Pelo amor de Deus, olhe para mim e diga que está brincando. Que está
tudo bem. Que posso ir ao banco retirar meu dinheiro.
Seu Oscar foi humilde e delicado
nas palavras. Katia era uma menina nova e cheia de sonhos, seu coração
derreteu. Ainda não tínhamos falado dela, vem de uma família fantástica, sempre
fora respeitadora e dessas que gosta de chamar senhores de fofos, e abraça todo
e qualquer senhor naturalmente ; é apaixonada pelo seu avô. Como uma menina de
poucas oportunidades, viu no serviço público uma solução para trabalhar e
ajudar sua família e tem apenas 22 anos. Foi verificar no sistema e percebeu
que para resolver o problema do senhor ela precisava apenas preencher o CPF,
RG, PIS/PASESP, CEP e havia um espaço a ser preenchido que era o endereço da
pessoa. O restante era arquivado e levado para sala de arquivos, como uma
maneira formal de registrar o processo. Ela foi até a sala de arquivamento e lá
verificou vários papeis fora de ordem. Documentos que nunca ninguém iria
checar, um caminhão aparecia às vezes para retirar os documentos e a algum
lugar eles eram levados. Lugar seguro, sim, pois o processo precisava ser
respeitado, mas ela entendeu tudo e retornou e ao guichê de atendimento:
- Senhor espere um minuto.
Pegou seus documentos, os
arquivou e com sua senha liberou o dinheiro de Oscar. Tinha certeza de que na
verdade estava sendo responsável, sem nenhum peso na consciência se pronunciou:
- Pronto senhor, pode ir ao
banco. Lá você entrega esse papel aqui.
Oscar se foi e Katia ficou. Ela
observava todos os dias pessoas que não sabiam consultar sites e que demoravam
em torno de uma semana para reunir todos os documentos formais do processo. Via
senhores como Oscar serem encaminhados a cartórios e outros órgãos, toda aquela
quantidade de papel era arquivada e levada de lá, nunca ninguém consultava e
abria aquelas pastas. Ela se perguntava: com tanta tecnologia porque todo esse
processo é necessário? Queria abrir um pouco os olhos de seu chefe, para
facilitar um pouco mais as coisas, mas ele sempre focava no processo, e adorava
todo e qualquer tipo de protocolo. Ela percebeu que quanto mais apagada alma de
Rodrigo, maior
notoriedade o processo tomava, às vezes ele até dizia:
- Por isso eu e outros amigos
estamos batalhando para corrigir esse processo e incluir novo protocolo – como
sempre ao dizer protocolo simulava uma mão escrevendo na outra.
O coração de Katia todos os dias
ficava um pouco mais triste e sempre que podia, o processo era burlado.
Escrito por Daniel Vidigal
Foto: http://notasverbais.blogspot.com.br/2012/02/secretario-total-do-mne.html
Pois é!
ResponderExcluirBom texto e maravilhosa reflexão.
Eu sempre observo, aconselho, comento, reivindico em prol dos velhos hábitos para quem os tem.
Minha sogra por exemplo não quer saber de caixa rápido e sites e quer ir a agência onde tem conta a quilômetros de distância de sua casa. É hábito, é assim que ela aprendeu e fazia e se sente bem.
Ela tb quer morar nos bairros que já foram nobres e não são, mas para ela são.
Pagar com dinheiro parece opção ruim hj em dia, não tem troco, tenha cartão ou não leve.
Mas como assim???
Há que se compreender, respeitar, possibilitar e oportunizar meios de se fazer as coisas sem tecnologia. Pelo telefone, por papel, carta.
Outro dia me vi na situação de só poder resolver um problema com minha internet, pela internet???...Mas como???...Oh God!!!
Vlw pela visita e rico comentário lá no blog :)
Obrigado pela visita e pelo comentário. Você está correta, a tecnologia deve existir para facilitar e não para complicar. E que os hábitos dos mais velhos sejam respeitados.
ExcluirBeijos e tudo de bom.
Aí, Daniel, maravilha de postagem, cara! Sensacional. Pô, quantas vezes a gente tem que burlar sistemas para favorecer alguém justamente, e evitar a burrocracia criminosa em que pessoas encostadas se camuflam? Beleza, beleza, beleza.
ResponderExcluirNota dez essa história. Pô, essa katia aí deve ser um partidão. Valeu.
Obrigado e volte sempre Overture. Abraço
ExcluirOlá Daniel!
ResponderExcluirSeus textos são sempre muito bons e reflexivos.
Ah tal burocracia Brasileira, nos manda pra tantos lugares que até ficamos meio perdidos as vezes. Pior que é assim sempre.
bejoos
Sempre bom te ver por aqui Mayara. Que as Katias se espalhem pelo mundo.
ExcluirBeijos
Esse seu texto me parece um ponto de partida para desencadear outros assuntos, infelizmente principalmente a classe menos favorecida desconheci os seus direitos de cidadão e a burocracia foi feita para tornamos todos iguais perante a sociedade, só que muitas vezes não é isso que vemos no dia –dia.
ResponderExcluirVocê Daniel relatou de certo lugar e que teve alguém que se compadeceu desse senhor , sabemos que ela só fez a obrigação dela, mais infelizmente temos que elogiar por esse ato afinal são poucas pessoas que trabalham direito. Bom cada caso tem sua exceção e muitos só irão usufruir certos direitos de cidadania quando já não podem mais, muito triste isso.
Muitas vezes são pessoas despreparadas para a função ou simplesmente lhe falta boa vontade e isso que ocorre não são só mérito de departamentos publicos os privados deixam muito a desejar, na hora da contratação oferecem o céu e a terra mais quando surgi algum problema então. Independente de onde for se cada um fizer a sua parte sem olhar pra quem deixa de fazer a sua, ficaria interessante para os dois lados.
Parabéns muito bem escrito e sempre bem detalhado fazendo que nos leitores sentissem que fazemos parte de cada historia.
é verdade patricia. o enclausuramento financeiro acontece em todos os ramos da economia.
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