sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Conto- Cinco Rolos de Altura

Os ventos sopravam fortes, naquele outono de 1992, em Cruz das Almas. Depois do almoço o sol era tão quente que nem cachorro ficava na rua. Daniel não conseguia parar quieto em casa e por isso, nesse horário, ficava subindo nas árvores e no muro para olhar a rua. Ficava contando os minutos para a hora de seu pai sair para trabalhar para que pudesse cair na “gandaia”.  Jerônimo, irmão de Daniel, gostava de consertar os eletrodomésticos da casa e era mais caseiro. Sergio, vizinho deles, era um pouco mais velho e adorava contar “lorotas” para reforçar a sua superioridade. Alexandro tinha a mesma idade que Daniel, eram muito parecidos e quando ganhavam a rua, agiam como se o mundo fosse deles. Apesar do calor, o outono tinha uma característica especial: a partir das duas horas da tarde começava a bater um ventinho bem gostoso. Os garotos adoravam ficar em baixo das árvores gozando da sua deliciosa sombra. Nessa idade,  tinham entre oito e dez anos e as coisas ainda eram misteriosas. Todo mundo adorava vir com alguma novidade para impressionar o grupo, seja relacionada a futebol, mergulho, casas de abelhas, etc. Mas o assunto que tinha maior importância nessa época do ano era pipa. Conseguir uma era um sacrifício: tinham que pedir dinheiro para as mães para comprar a linha e o papel. Certa vez o grupo, liderado por Sérgio,  composto por Alexandro, Daniel  e Jerônimo, tinha o objetivo de atrelar 5 rolos de linha em uma só pipa e colocá-la para voar bem alto. De começo a idéia parecia simples, más após as primeiras conversas as dificuldades começaram a surgir: primeiro, não era qualquer pipa que iria suportar uma altura de cinco rolos pois, se os ventos fossem fracos, a linha formava uma barriga que poderia botar tudo a perder; segundo, esta não poderia ser de papel, pois uma simples chuva daria um prejuízo de uma mesada para todo o grupo; terceiro, havia uma torcida composta por outros garotos agoureiros rezando para tudo dar errado.

A armação da pipa, tradicionalmente feita de bambu, não era suficientemente forte para suportar o vento. Assim, o bambu foi descartado e substituido por varetas da palha do dendezeiro, bem mais fortes e mais leves. Houve uma grande briga para ver quem iria montar a armação, pois havia uma grande disputa de quem era o mais habilidoso para tal atividade. Acabou que fizeram uma divisão: um iria cortá-las e usiná-las nas medidas certas, o outro iria fazer as marcações para que fossem colocadas, sem erro, na posição e o terceiro iria fazer as costuras para a conclusão da armação. A pipa foi feita de saco de lixo plástico para suportar uma possível chuva, mas a cola normalmente usada não iria funcionar no papel manteiga. Parecia que estava tudo perdido, mas o Sérgio se lembrou de uma cola reforçada que o seu pai deixava escondida em casa.  Então ele foi lá e pegou-a escondido. Durante a sua utilização uma grande tensão tomou conta do grupo, pois o Sérgio disse que um menino que foi usá-la colocou os dedos na boca e, por desobedecer a seus pais, ficou com os lábios colados para o resto da vida. Essa história tinha sido contada por seu pai. Tudo deu certo: Sérgio e Jerônimo fizeram uma colagem perfeita do saco de lixo na armação. Era muito gratificante ver aquela pipa montada e reforçada. Construir o seu rabo era o mais fácil que restava por fazer. Aproveitaram os próprios sacos de lixo que sobraram para fabricá-lo e... a pipa ficou pronta.



Para colocar a pipa em operação o Sérgio começou a demonstrar medo de perder toda aquela linha e todo o trabalho que tiveram, fora que no dia, os garotos da rua, que não tinham ajudado em nada, estavam de plantão olhando tudo. Daniel, Sérgio, Jerônimo e Alexandro se xingaram por um momento: o Sérgio dizia que não ia dar certo, Daniel apenas observava, Alexandro queria que funcionasse e por fim, Jerônimo, que era um pouco teimoso, disse que a pipa ia voar e pronto. Jerônimo pediu que Alexandro segurasse a pipa para que ele a pudesse erguer com a linha. O primeiro vôo da pipa foi um momento gratificante. Foi muito legal escutar o barulho do plástico da calda se espalhando pela paisagem verde de Cruz das Almas. Então a linha da pipa começou a sair da lata de Nescau fazendo-a voar cada vez mais alto. Aos poucos ia se distanciando da zona de controle. A barriga ia tomando uma dimensão preocupante. Todo o investimento estava em risco. Quando a pipa estava a uma altura aproximadamente de dois rolos de linha parecia impossível continuar. Então Sérgio falou:

-Eu não disse?

O grupo não sabia como reagir. Sérgio tinha razão. Todos os garotos iam rir deles. Eram impotentes quanto ao erro que haviam cometido, pois a barriga já estava quase pegando em umas árvores distantes de uma fazenda. Uma decisão havia de ser tomada. Continuar ou desistir? Daniel interveio:

- Eu não tive todo esse trabalho para desistir agora. Vou até o final. Vamos pegar a lata de Nescau, uma bicicleta e sair correndo pela Rua puxando a pipa. Assim a Pipa vai subir, quem sabe, a uma altura de três rolos. Nesse caso os ventos não são mais fortes? Ali pode haver ventos que mantenham a pipa firme.

A idéia foi bem aceita pelo grupo. Sérgio pegou a lata de Nescau com a Bicicleta e saiu correndo e a pipa começou a subir rapidamente. Ai então um fato curioso aconteceu: os ventos começaram a soprar mais fortes, a linha se tornou tensa e a pipa começou a subir bem alto. Todo o grupo vibrava, pois era a primeira vitória parcial. Rapidamente a pipa tomou uma altura aproximada de três rolos de linha. Faltavam apenas dois. De fato, na altura de três rolos o vento soprava bem mais forte. Difícil era chegar até ali, mas a partir desse ponto a linha começou a desenrolar-se da lata de Nescau com uma espontaneidade surpreendente. Os garotos apenas desfrutavam do trabalho que tinham tido. A pipa era capaz de Voar até mais de cinco rolos. Era forte e coesa, diziam os garotos sorrindo.

- Olha só como a linha está tensa. Imagine a força que um avião não tem que ter para voar! Lá em cima os ventos sopram muito fortes.

Outros garotos da rua apareciam para conferir a força do vento. Faziam questão de tocar na linha e verificar como estava tensa. Rapidamente a pipa chegou à altura de cinco rolos. Ali ela permaneceu firme e forte por meia hora. A estrutura de palha de dendezeiro era forte o suficiente para agüentar o tranco.

A Pipa tinha que descer. Então o grupo percebeu que não tinha pensado em tudo, pois a Pipa tinha condições de subir, porém, a descida era muito mais complicada. Não havia condições de enrolar aquela quantidade de linha na velocidade que era necessária para a pipa não cair. Em um determinado momento a Pipa voltaria à zona de ventos fracos. Esta atividade ia exigir muito comprometimento do grupo. Começaram a enrolar a linha na lata de Nescau e combinaram que ia acontecer de maneira revezada para não sobrecarregar ninguém. Chegou o ponto em que a barriga da pipa começou a beirar as árvores. Então não havia opção. O grupo começou a puxar a linha numa velocidade maior do que a de enrolar na lata de Nescau. Isto fazia com que a linha começasse a embolar no chão, trazendo o risco de perderem-se os cinco rolos. O esforço feito pelos garotos era imenso. A sensação de frustração voltou a tomar conta do grupo. O revezamento era feito, mas era cada vez mais difícil manter a pipa e evitar o depósito de linha no chão. Outra idéia surgiu: começaram a correr com a lata de Nescau a na direção oposta da pipa. Todo o esforço não foi suficiente, pois a pipa embolou nas árvores.  Sérgio e Alexandro começaram a discutir:

-Eu não disse seu Jumento – agrediu Sérgio.

-Preguiçoso, seu cara de azeitona estragada- retrucou Alexandro.

Marquinhos era um dos observadores que estavam ali para apreciar a pipa. Não tinha ajudado no projeto mas interviu:

- Galera, é só enrolar a linha e pegar a pipa encima da árvore. Vejam – apontou- vamos enrolando a linha até a árvore e chegando lá alguém sobe para pegar.

Os garotos entreolharam-se e concordaram com a idéia. Essa tarefa foi realizada bem rápido. Coube ao Alexandro subir na árvore. A pipa ficou um pouco machucada: ela não se livrou de alguns rasgos, nada que não pudesse ser consertado. Combinaram que a pipa não voltaria a voar. Ficaria na casa de Sérgio. Os garotos tinham a ilusão de que a Pipa seria guardada e sempre que a turma da rua comentasse o feito eles poderiam ver a pipa na casa do Sérgio. Os ventos foram diminuindo à medida que chegava o verão. A pipa foi destruída em uma das faxinas que a mãe do Sérgio fazia em casa. Outras realizações e necessidades apareceram na vida desses garotos, cada uma com suas particularidades e desafios.

3 comentários:

  1. Li este também... Boas recordações da infância contadas de forma simples e agradável. Muito bom!

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  2. Gostei moço! Afinal, empinar pipas era meu lazer predileto. Cruz é uma das poucas cidades com essa cultura tão arraigada. Afinal, temos dois fatores favoráveis, um social e outro natural: os bambus das espadas queimadas no mês de junho e o relevo plano da cidade que facilita a passagem dos ventos do mês de julho. Fomos previlegiados de ter tido esse prazer de empinar pipas, em uma cidade propícia.

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    1. Sempre bom quando alguém de Cruz das Almas da nossa época le esse conto Arnulfo. Abraço

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